Marcílio Boaventura Vieira Abritta
Esta história tem uns 50
anos. As minhas histórias, assim como eu, estão ficando velhas. Ocorreu em
meados de 1962, ou começo de 63, durante as férias escolares. Não me recordo se
chovia dezembros ou fazia frios de julho.
Eu sei é que o “Cine Guidoval’, do Severino Occhi, apresentou o show do maior sucesso infantil, à
época, no país. O cantor-mirim era o filho mais velho do Tio Lalade e Tia Lili, o primo Marcílio
Boaventura Vieira Abritta.
E eu estava lá. Vaidoso,
feliz, todo orgulhoso com o sucesso dele, que imitava com perfeição um menino
espanhol, ator e cantor conhecido como Joselito. Os filmes emocionavam crianças e adultos no mundo
inteiro. Guardo para mim esta noite inesquecível, dessas para ficar dependurada
no varal da memória.
Marcílio se apresentava
Não sei detalhes de como foi
descoberto o seu talento musical. Sei que a acompanhá-lo a todos os lugares
estava o Padre José (?González Raposo?), uma espécie de preceptor,
guarda-costas, empresário e guia espiritual.
O missionário Padre José pertencia ao Seminário Claret, da cidade de Rio
Claro
Naquele tempo dar instrução
aos filhos era um privilégio de ricos.
As famílias mais humildes só conseguiam dar estudos aos filhos
mandando-os para seminários mantidos por padres ou colégios técnicos
subsidiados pelo governo.
Acredito que não foi por
vocação do Marcílio ou promessa e devoção dos pais Osveraldo
Abritta (Lalade) e Maria
Vieira Abritta (Lili) que
ele entrou para o seminário. Foi a vontade e a
necessidade de aprender, progredir e vencer na vida. Foi um ato de sabedoria e
coragem, desprendimento com sofrimento dos seus pais ao se privarem da
companhia do primogênito. Nesse seminário Marcílio estudou o ginasial e quase
todo colegial.
Revivendo estes fatos, me
vem uma boa saudade dos bons momentos que passei em Cataguases.
As brincadeiras com os primos Cláudio, Júlio, Fernando e Marcílio. As primas
Inês e Isabel, bem mais novas e por serem meninas, brincavam com as suas
bonecas. E íamos, moleques, percorrer ruas do Bairro Granjaria, pular córregos, invadir as dependências do
Colégio Cataguases, adentrando-no
pelo buraco aberto na cerca devassável. Participar das “peladas” no campo de
futebol. Penetrar as dependências do colégio, admirar as belezas do projeto
de Oscar Niemeyer, jardins de Burle Marx e obras de Portinari.
Um dia,
sozinho, com a inconseqüência dos meus oito ou nove anos, perambulando pelas
ruas desse bairro me perdi lá pras bandas da Praça de Esporte. Atrevi-me a
atravessar a linha férrea, cruzar a Avenida Astolfo Dutra.
Depois foi uma proeza para encontrar o caminho de volta. Retornar ao latifúndio
dos tios Lalade e Lili,
situado entre a Avenida João Inácio Peixoto e Avenida Cel. Artur Cruz. Foi uma
manhã de susto e medo, perdido entre ruas arborizadas na terra da Revista Verde
e Rosário Fusco.
Numa dessas férias fomos a Cataguarino. No final do século 19, esse pequeno lugarejo
acolheu o casal Joseph Abritta e Angela
Salerno, avós do Tio Osveraldo.
E lá a família multiplicou-se. Hoje temos Abritta e Abrita espalhados por todos os cantos, povoando esse
mundaréu.
Ficamos hospedados na casa
de um parente do Tio Lalade que possuía um armazém.
Um dos comerciantes só andava de camisolão. Sofria de incontinência urinária.
Esta imagem inusitada ficou guardada para sempre na minha cabeça.
Adornando uma
mesinha na sala havia um pequeno escudo do Flamengo feito de pano, no formato
de um coração. Creio que recheado de algodão ou outro material para fazer o
enchimento. Era menor que o tamanho de um punho. Na mesma sala enfeitando a
parede um estribo, modelo sapato, de bronze.
Assim como o meu pai Zizinho do Marcílio, o Tio Lalade
torcia pelo Vasco da Gama desde antes do “Expresso
da Vitória”. E permaneceu fiel ao time de coração até a eternidade.
Ao ver o brasão rubro-negro,
maior adversário do seu clube, ouriçou-lhe os pelos, mexeu com os seus brios.
Tio Lalade teve uma ideia, propôs
ao sobrinho, nesse caso eu, a seguinte estripulia “vamos esconder o coração do Flamengo dentro
desse sapato-estribo”. Topei na hora. Toda criança gosta de um mal feito. E
nessa ocasião eu ainda não estava contaminado pelo “flamenguismo”,
doença que depois que nos pega, jamais nos abandona.
Colocamos o plano em
prática. Tio e sobrinho, cúmplices, sorrateiros, esconderam o emblema do time
da Gávea no interior do sapato de bronze. Não sei por quanto tempo ficou sumido
o distintivo do MENGO. Sei que a travessura persiste na minha memória.
E nessa Pasárgada
encravada ao pé da Serra da Onça, éramos amigos do rei, nesse caso a Família Abritta. E mesmo sob a cerrada vigilância do Padre José,
guarda-costas do Marcílio; aprontamos as nossas bagunças. Nadamos no córrego.
Apoderamos da quase centenária Igreja do
Divino Espírito Santo do Empoçado. Tivemos acesso ao sistema de som.
Colocamos na vitrola discos de 78 rpm.
Sonorizamos a dorminhoca Cataguarino com melodias e
chiados. Na sacristia, encontramos uma vasilha repleta de hóstias. Com a
autorização eclesial do primo Marcílio comemos muitas
hóstias. Eu que fizera a Primeira Comunhão havia pouco tempo achei, a
princípio, uma heresia comer hóstias. Acontece que o argumento do primo mais
velho e seminarista continha fundamento. Sem a CONSAGRAÇÃO, a hóstia seria
apenas uma massa de pão ázimo. Não pecamos.
Hoje não tem mais a velha
igreja. Os doidos, sempre de plantão, desmancharam-na em 1965.
Não sei se antes ou depois
desse passeio a Cataguarino, pegamos uma carona no
almoço oferecido pelo Monsenhor da Igreja Santa Rita de Cássia ao Padre
José e Marcílio. Uma ceia, um banquete.
Em meados da década de 60
fervilhava o mundo musical. Era assim na Meia Pataca do poeta Joaquim Branco e
no antigo Sapé de Ubá, na Barbearia do Sô Nilo onde se reunia os bambambãs da
música de Guidoval.
Em 1965, os Beatles
contagiam com Help de
Lennon/McCartney, Roberto Carlos ataca de “Quero
que Vá Tudo pro Inferno” e os Rolling
Stones de Mick Jagger eletriza a juventude com "(I Can't
Get No) Satisfaction".
Contrapondo-se ao rock'n'roll,
no Brasil apelidado de iê-iê-iê ou
Jovem Guarda; a Bossa Nova consagrava-se
na trilogia de João Gilberto com (Chega
de Saudade - 1959), (O Amor, o
Sorriso e a Flor - 1960) e (João
Gilberto - 1961). Isto sem contar as canções românticas de Vinicius de
Moraes e Carlos Lyra como Minha namorada
e Primavera; além dos
disputadíssimos festivais de música da TV Excelsior e Record. Elis Regina
interpretando Arrastão, Nara Leão
cantando a Banda de Chico Buarque e
Jair Rodrigues arrebatando o público com
a Disparada de Theo de Barros e
Geraldo Vandré.
E caminhando “sem lenço e sem documento” pelas ruas,
praças e avenidas na terra dos Peixoto discutíamos as nossas preferências
musicais. Os irmãos Fernando e Marcílio fãs ardorosos do rock/iê-iê-iê; eu e o primo Nivaldinho,
filho da Tia Zizi e Nivaldo Abritta, defensores da
Bossa Nova e a boa Música Popular Brasileira (MPB). Tolas discussões que não levam a nada, como todas as
discussões.
Em 1968 eu estudava na
Escola Agrícola de Rio Pomba. No dormitório, cada quarto contava com 18 camas,
nove de cada lado. A cama ao meu lado era do amigo juiz-forano Mauro Callado.
Um dia ele chegou com um violão que passou a morar entre as nossas camas.
Notando a minha curiosidade pelo instrumento, ele se dispôs a me ensinar os três
primeiros acordes. Com eles tocava todo meu minguado repertório. Todos os
acordes feitos no primeiro traste (Lá maior, Ré maior,
Mi sétima). Um fiasco.
De novo veraneando por Cataguases, usufruindo da hospitalidade e o carinho da Tia Lili e Tio Lalade, encontro o
Marcílio Boaventura dedilhando um violão. Aproveito
para lhe revelar que eu estava tentando apreender a tocar este instrumento. E tô tentanto até hoje. O Marcílio
tocava num conjunto da cidade, realizava bailes na região. Dominava guitarra e
baixo. Em poucos minutos me deu uma aula sobre o braço do violão. Os intervalos
das notas, tom, semitom, bemóis e sustenidos. E a tacada de mestre, o acorde
feito no primeiro traste, se repetido com pestana, ao longo do braço do violão,
ia se modificando como numa escala musical. De repente aprendi um dicionário de
acordes. Simples, fantástico, inacreditável. Uma lição para o resto da vida.
Agora me bateu uma dúvida.
Não sei se antes ou depois de tocar nesse conjunto musical, o Marcílio teve um
programa numa rádio de Cataguases. Formou uma dupla
com a cantora Maria Alcina. A dupla MM.
Mais tarde a Maria Alcina seguiu uma fugaz carreira solo.
Mesmo talentosa, surgiu e evaparou-se no sucesso de “Fio Maravilha”. Coisas da vida!
E no turbilhão da roda-viva cada
primo foi para um lado. Eu andei por Rio Pomba, São João del Rei, Lavras e me fixei
Como hoje é dia do
aniversário do Marcílio, deixo aqui os meus parabéns, felicidades e votos de
muita Saúde, Sorte e Sucesso!
escrito por
Ildefonso Dé Vieira
em 11/12/2012
ADENDO:
Os primos estão agora se reencontrando nas páginas do facebook.